Acima (da esq. para a dir.): Ana e Jéssica Bernarda dos Santos, Tahís Helena e Marli Vicente durante o debate ´A resistência presente nos territórios da Baixada Santista e o papel da universidade`.
A universidade pública deve ouvir mais as pessoas que moram nas comunidades, possibilitando que moradores e moradoras participem das discussões sobre suas prioridades e demandas, integrando e valorizando os conhecimentos acadêmicos e populares. Essa foi a tônica do debate ´A resistência presente nos territórios da Baixada Santista e o papel da universidade`, promovido pelo Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva (DPPSC) da Unifesp-BS, dia 29 de agosto. Com apoio do Observatório do Instituto Saúde e Sociedade (ISS), o evento contou com a participação das líderes comunitárias Ana Bernarda dos Santos, Jéssica Bernarda dos Santos (Vila Pantanal) e Marli Vicente da Silva (Vila dos Pescadores), além da assistente social Thais Helena Modesto Villar de Carvalho, integrante do Núcleo de Lideranças de Mulheres da Zona Noroeste (Nuclin). A mediação foi do professor Carlos Roberto de Castro e Silva.
As lideranças ressaltaram a importância dos projetos de extensão que vêm sendo desenvolvidos pela Unifesp-BS em diferentes comunidades. No entanto, foram unânimes em afirmar que é necessário aprimorar os canais de comunicação, estreitar a parceria e, principalmente, promover o protagonismo das pessoas que moram nos bairros.
Promovido pelo Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva, com apoio do Observatório do ISS, o debate foi mediado pelo professor Carlos Roberto (Beto - à esquerda) e contou com a participação de docentes, alunos, além de outras lideranças e participantes de projetos de extensão.
“A universidade precisa conversar e nos ouvir, para saber o que é viver na periferia”, afirma Marli Vicente. Ela reconhece a atuação da Unifesp, mas destaca que todo conhecimento tem valor e precisa ser valorizado, seja acadêmico ou não. “Somos escudo de uma sociedade de extermínio e a gente precisa dos jovens, o futuro está nas mãos da gente é agora. Quem mora em favela é gente. Quanto mais conhecimentos as pessoas adquirem, mais se afastam das suas origens e isso não é bom. A gente esquece que o mais importante é estarmos juntos. As pessoas estão sofrendo. Para fazer parte da transformação, só precisa ter amor ao próximo”, declara.
Marli Vicente (foto) desenvolve projeto social com 320 crianças da Vila dos Pescadores. Oferece oficina de teatro, meio ambiente e cultura. Também atua com mulheres costureiras. Entre outros projetos, o Isac – Instituto Socioambiental e Cultural desenvolveu o videogame ´Jornada de uma criança`, para conscientizar sobre o valor do mangue, e está em documentário que já percorreu 23 países. “Morar na Vila dos Pescadores é morar no paraíso. O mangue é afrodisíaco. Mas é uma vila cobiçada pelo mercado imobiliário, porque está num ponto estratégico. No entanto, a 2km da comunidade há um ´navio bomba`; há, também, uma cava com tudo de ruim que saiu de Cubatão. Não vou me calar diante das injustiças. O bom é olhar no espelho e não ter vergonha do que vê: eu sou uma pessoa do bem”, conclui.
Ana Bernarda (foto abaixo), presidente da Sociedade de Melhoramentos da Vila Pantanal, também destaca a necessidade de fortalecer os laços entre universidade e comunidades periféricas. Aos 63 anos, vítima de esclerose múltipla, confessa que ficou com “muito medo” durante a pandemia, mas não deixou de ajudar as pessoas da comunidade, porque “a fome batia na porta de muitas famílias e é muito triste”.
Ela afirma que as lideranças da comunidade acabam por fazer o trabalho que era para o município, para o poder público. “Os políticos aparecem de quatro em quatro anos. O povo é carente de atenção e acaba ouvindo as promessas. Como a gente pode se fortalecer? Para se fortalecer é preciso ter conhecimento dos nossos direitos. No caso da universidade, por exemplo, é direito de cada cidadão estar neste espaço. Mas precisamos fazer com que todos conheçam seus direitos. Muitos, na periferia, não entendem que eles podem e devem estar aqui. Para muitos, isso não é resistência, mas fantasia. Como trazer essas pessoas para cá? Apenas 1% dos moradores da periferia está na universidade. Os demais não vislumbram outra realidade, então, aqueles que fazem faculdade são vistos como bobos.”
Filha de Ana, também liderança atuante, Jéssica Bernarda, 30 anos, nasceu na Vila Pantanal, onde coordena projetos de esportes e promove eventos na sociedade de melhoramentos da comunidade. “São mais de 500 pessoas tiradas das ruas por meio da capoeira, da dança, do futsal, e de atividades para as mães. Oferecemos acolhimento, porque as pessoas da periferia não se veem dentro de uma universidade”. Para ela, resistência faz parte do cotidiano. “Atuo na comunidade há 15 anos. Minha mãe e o meu pai eram garis. Fiz o Instituto Federal de Cubatão e vi na faculdade a saída para lutar por uma vida melhor. A faculdade tem papel fundamental dentro da comunidade, porque pode mostrar o potencial das pessoas e outras realidades possíveis”.
Jéssica Bernarda (foto) conta que a Unifesp fez pesquisa na Vila Pantanal durante a pandemia e se tornou parceira. “A universidade veio, a gente ajudou famílias com cesta básica e as meninas gostam de ver pessoas que mostram que elas têm oportunidade. Elas começam a ver possibilidade de futuro. A gente quer que a universidade vá lá mais vezes. Como podemos fazer com que a comunidade perceba a força que ela tem e como podemos adentra e ocupar espaços como este? Temos que mostrar que a faculdade não é bicho de sete cabeças. A educação é libertadora. É importante, também, trabalharmos com as crianças, porque, quando a criança muda, a mãe e o pai percebem e apoiam. Meu papel é de luta. Tenho de estar em lugares como este e mostrar que minha comunidade existe, não só no âmbito político”, ressalta. (Clique aqui e assista ao documentário ´Pandemia das desigualdades`, que aborda a pesquisa mencionada por Jéssica. A íntegra da pesquisa está disponível no Repositório Institucional da Unifesp)
“Não tem como falar sobre universidade e territórios sem falar sobre o papel das extensões universitárias, porque é justamente a extensão a comunicação entre universidade e sociedade. Apesar disso, a extensão universitária é tratada pela Capes e pela CNPq como a prima pobre dentro das universidades. Ela não acumula pontos por produção, o que é muito bom porque não entra nessa lógica produtivista, entretanto, não entrando nessa lógica, ela é tratada com menos financiamento. Ou seja, a coisa que faria a universidade cumprir sua função social é na qual menos investe dinheiro. E sabe no que isso implica? Ao invés de um nós estudantes construirmos juntos com o território os nossos projetos de pesquisa, a partir de uma demanda coletiva, primeiro a gente pensa o projeto aí sim vai no território”, afirma.
Thais Helena (foto) reconhece a importância de temas e problemáticas levantadas pelos estudantes, mas ressalta que, sem ouvir a comunidade, pode-se optar, dentro da universidade por algo que não é urgente para os moradores naquele momento. “Eu posso querer pesquisar moradia, mas para aquele território, se fossem opinar na escolha da pesquisa, escolheriam outro tema. Isso quer dizer que moradia não é importante? Óbvio que é importante. É que talvez naquele momento faça mais sentido, ou é mais urgente, outra uma outra pesquisa. Isso acontece muito com a população em situação de rua: todo mundo acha que a demanda vai ser moradia ou descriminalização e legalização das drogas. Na primeira vez que eu participei do Redução de Danos, aqui na Unifesp, os moradores em situação de rua responderam que queriam discutir cultura, arte, e fazer um jornal. Eu pensei: gente, uma época de chuva, frio e eles queriam discutir arte e fazer um jornal. Aí nasceu o Vozes da Rua, para quê? Para denunciar que não tem banheiro, para contar as histórias deles, para mostrar as produções artísticas que eles fazem, para reivindicar”, conta.
Para ela, a universidade precisa abandonar a concepção de que tem a visão de totalidade e o território não; deixar a ideia de que “nós universitários” sabemos o que é melhor para o outro. “Eu tenho cada vez mais convicção de que não dá para realizar pesquisas sem ter tido contato previamente com a comunidade. Não dá para fazer o contato durante a pesquisa, principalmente trabalho de conclusão de curso que são dois semestres. Não se cria vínculo saudável em um ano. Se você quer pesquisar e isso vai envolver uma determinada comunidade, tem que ser feito com muita antecedência. Não dá para ser uma etapa da plataforma Brasil sabe? Não cabe, é uma relação maior. Os territórios não são laboratórios para suprir as nossas necessidades de produção, mesmo que essa pesquisa seja um requisito para se formar. O motivo das nossas pesquisas vem de uma demanda coletiva? É uma pergunta que se se deve fazer. Eu entendo a importância da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, mas acredito muito que deveria ser extensão, e, a partir daí, tivesse ensino e pesquisa”.
Thaís Helena critica o que define como “hierarquia de saberes” e ressalta que é necessário respeitar e aprender com os conhecimentos locais. “Os órgãos de pesquisa ainda colocam a universidade como conhecimento científico e os territórios como saberes locais. Os dois conhecimentos são científicos. O que essas mulheres e tantas outras fazem nos territórios para sobreviverem é ciência. Para se construir uma palafita em cima de mangues requer método, para realizar uma ocupação requer método. Assim como a universidade, os territórios também têm seu papel político, social e científico. Enquanto estudante, é nosso papel reivindicar que o conhecimento dos territórios também faz parte do campo das ciências”, conclui. (Assista ao documentário ´Mulheres da Maré`, produzido a partir do TCC de Thaís Helena, que foi lançado em livro: ´Eu não tinha condições de pagar um aluguel decente. A política habitacional e urbana segundo a perspectiva da(s) mulher(es) negra(s)`.)